sábado, 18 de setembro de 2010

Isolado

Diário do Hospício
Lima Barreto (1881 - 1922)


*** Datação ***

-Estou no Hospício, ou melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado.
-Passei a noite de 25 no pavilhão, dormindo bem, pois a de 24 tinha passado em claro, errando pelos subúrbios, em pleno delírio.
- Dormi a noite de 26 no dormitório geral e a de 27 no quarto do estudante. 28 foi domingo, recebi visitas do meu irmão e do senhor Ventura, ambos me trouxeram cigarros, e o senhor Ventura, passas e figos. Ainda desta vez, dormi no quarto, com o estudante.
- Na segunda-feira, antes que meu irmão viesse, fui à presença do doutor Juliano Moreira. Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não me admoestou. Fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar. Disse-lhe que na secção Calmeil. Deu ordens ao Sant’Ana e em breve lá estava eu.
- Eu entrei na Secção Calmeil, secção dos pensionistas, na segunda-feira, 28 de dezembro.
- Cá estou na Secção Calmeil há oito dias. Raro é o seu hóspede com quem se pode travar uma palestra sem jogar o disparate.

*** Descrição ***

- O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma pobreza sem par.
- O hospício é bem construído e, pelo tempo em que o edificaram, com bem acentuados cuidados higiênicos.
-As salas são claras, os quartos amplos, de acordo com a sua capacidade e destino, tudo bem arejado, com o ar azul dessa linda enseada de Botafogo que nos consola na sua imarcescível beleza, quando a olhamos levemente enrugada pelo terral, através das grades do manicômio, quando amanhecemos lembrando que não sabemos sonhar mais...
- Infelizmente, não tenho um quarto, pra mim só, nem outro companheiro. Habito, com mais dezenove companheiros, um salão amplo, com três janelas para a frente da rua, olhando para o mar. A minha cama fica perto da janela, mas entre ela e eu, há um colega dos mais estranhos da casa. Só sai do dormitório para as refeições, para lavar o rosto de manhã, conjuntamente com os trapos, na pia; e , afora disto, vive a dormir, ou á janela, dizendo uma porção de coisas desconexas em que ele repete sempre coisas de jogo e batota.


*** Frases e palavras ***

-Pastorear os doidos
- Resignação; Desfalcada; pueris;
- Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.
- O senhor não me conhece?
- Não quero morrer, não, quero outra vida. [Mas que chances tem eu, de ter outra vida.]
- Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só.
-Por que a riqueza, base da nossa atividade, coisa que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é também a causa da loucura? Por que as posições, os títulos, cousas também que o ensino quase tem por meritório obter, não é causa da loucura?
- A loucura dá intervalos.
- Eu não sou nada! Nada! Ponha tudo isto fora!
-Haverá contágio na loucura? Creio que sim. Ambiência do hospital.
-Já tenho medo de ficar aqui.

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