sábado, 18 de setembro de 2010

Isolado

Diário do Hospício
Lima Barreto (1881 - 1922)


*** Histórias***

- Queirós, estudante de medicina, que um ataque tornara hemiplégico e meio aluado.
-Paro aqui, pois me canso; mas não posso deixar de consignar a singular mania que têm os doidos, principalmente os de baixa extração, de andarem nus. Na Pinel, dez por cento assim viviam, num pátio que era uma bolgia do inferno. Por que será?
- Nem todos são insuportáveis; na maioria são obedientes e dóceis; mas os poucos rebeldes e aqueles que se enfurecem, de quando em quando, são por vezes de fazer um homem perder a cabeça.
- Há um doente aqui, F.P, em quem eu vejo misturado o amor e a presunção de inteligência e de saber. É o mais bulhento e rixento de casa. Desde as cinco horas da manhã até à sete ou oito da noite, ri, vive a gritar, a berrar, proferindo as mais sórdidas pornografias. Compra barulho com doentes e guardas, descompõe-nos, como já disse; mas, dentro em pouco, está ele abraçado com aqueles mesmos com que brigou há horas, há dias.
- Poderia alongar-se mais na descrição dos doentes que me cercam. Mas a loucura tem tantos pontos de contato de um indivíduo para outro, que seria arriscar tornar-se fastidioso se quisesse descrever muitos doentes. Há uma grande parte que se condenam a um mutismo eterno... Estes silenciosos são bizarros... Um é um tipo acaboclado...É uma grande atonia, de uma inércia que não se concebe. Para deitar-se, é preciso ser trazido para a cama, mas logo se levanta e encosta-se à parede de um corredor e aí fica, até que o tragam de novo. Ama o silêncio e estar de pé. Encostado à parede, hirto, olhos parados, sem brilho nem expressão qualquer, parece uma estátua egípcia, um cimélio de templo.
- Os enfermeiros, na secção em que estou, são em geral bons. Há, porém, uma casta deles que não presta.
- Os guardas em geral, principalmente os do pavilhão e da secção dos pobres, têm os loucos na conta de sujeitos sem nenhum direito a um tratamento respeitoso, seres inferiores,com os quais eles podem tratar e fazer o que quiserem.
- Ontem, matou-se um doente, enforcando-se. Escrevi nas minhas notas: “Suicidou-se no pavilhão doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia tão bela como o de hoje.” Não me animo a dizer: venceste, Galileu, mas, ao morrer, quero com um sol belo, de um belo dia de verão.
-O outro é muito velho e é um fratricida. Está mudo ou quase mudo. Certas formas de loucura têm esse efeito, e manifestações dela são as mais díspares possíveis. Debruçar sobre o mistério dela e decifrá-lo parece estar acima das forças humanas.
-A proeza do D.E. agitou todo o hospício, pôs a rua em polvorosa e suspendeu o tráfego da light, e havia no seu procedimento muita coisa, que parecia ser ele premeditado. Doentes lá embaixo, e outros com os quais vim a conversar depois, disseram-me que sim, que ele tinha feito veladas ameaças do que ia fazer. Num dado momento, trepado e de pé na cumieira, falando, cabelos revoltos, os braços levantados para o céu fumacento, esse pobre homem surgiu-me com a imagem de revolta... Contra quem? Contra os homens? Contra Deus? Não, contra todos, ou melhor, contra o Irremediável!
- Meu vizinho de dormitório é um rapaz cuja loucura reagiu sobre o seu aparelho vocal a ponto dele mal falar e com esforço. Olha-me estupidamente, e com um olhar parado e de um único brilho, e tem a mania de incapacidade de ingerir qualquer alimento. Tudo se tem experimentado: leite, frutas, até um irrigador; mas é em vão. Ele não ingere nada e ,se ingere à força, logo vomita, debilita-se e dá em suar às catadupas.
-Um outro companheiro de dormitório é um tal Cabo Frio. Está completamente estúpido, não fala e vive hieraticamente esteado nas paredes, ou nos cantos, como uma estátua de tempo egípcio... O que me aborrece é a sua inércia, a sua falta de iniciativa, e furto do livro, como já disse, fez-me aborrecê-lo mais, conquanto suspeite de outros: um tal Veiga, o F.P, o sargento e mais um tal Gastão
- No hospício, não vi nada semelhante. Os loucos me pareciam pouco emotivos e quase todos eles se queixavam dos seus parentes e das suas mulheres.
-Era um rapaz pálido, de feições delicadas, franzino, que vivia sempre com um lenço na cabeça, bem molhado. A princípio, julguei que fosse para manter a pastinha inalterável, com o seu vinco muito nítido no meado da cabeça; mas, bem cedo vi que não. Uma noite, delirando, ele gritou: “Estão me queimando a cabeça!” Atinei logo com o seu delírio, e em breve ele explicou todo o seu sofrimento imaginário, fazendo questão de que eu escrevesse e tirasse nota do que ele me expunha.
- A... , companheiro de dormitório, tem a mania de trazer a cabeça molhada e os cabelos presos por um lenço fino. Uma noite, despertou gritando: Estão me atando fogo na cabeça” Dorme com uma venda nos olhos e tem ao lado um verdadeiro guarda-comidas. Manias literária.
-Há alguns que não são aparentemente doentes, mas que em dados momentos se denunciam em contrário. Os epilépticos, os sujeitos a certas manias que têm um delírio de tempos em tempos. Conheço o E.P. desde que entrei aqui, como homem polido, de certa educação, serviçal, não aparentando a menor mania, senão a de não sair daqui. Foi estabelecido com tabacaria e mostra ter boas relações de amizade. Uma vez atrasou-se no banho; o guarda, ao passar pelo banho para o café, disse-lhe uma coisa sem importância, ele vestiu-se rapidamente, chegou a tempo, o guarda repetiu uma pilhéria sem alcance e, por isso, ele se fez pálido, beiços roxos e tremendo que nem uma pilha. Que seria capaz de fazer?

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