sábado, 18 de setembro de 2010

Isolado

Diário do Hospício
Lima Barreto (1881 - 1922)



(1919)
*** Lima Barreto ***

- Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra aqui pelas mães da polícia.
- De mim pra mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.
- Estou incomodando muito os outros, inclusive os meus parentes.
- Eu queria um grande choque moral, pois físico já os tenho sofrido, semimorais, como toda espécie de humilhações também. Se foi o choque moral da loucura progressiva de meu pai, do sentimento de não poder ter a liberdade de realizar o ideal que tinha na vida, que me levou a ela, só um outro bem forte, mas agradável, que abrisse outras perspectivas na vida, talvez me tirasse dessa imunda bebida que, além de me fazer porco, me faz burro.
- O melhor é calar-se, pouco dizer, mergulhar na leitura, no cigarro, que é a paixão, a mania de todos nós, internados, e o possuí-los em abundância é um perigo que se corre e só pode ser evitado pela astúcia ou pela energia.
- Estou entre mais de uma centena de homens, entre os quais passo como um ser estranho. Não será bem isso, pois vejo bem que são meus semelhantes. Eu passo e perpasso por eles como um ser vivente entre sombras- mas que sombras, que espíritos?
-Desde a minha entrada na Escola Politécnica que venho caindo de sonho em sonho e, agora que estou com quase quarentas anos, embora a glória me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida, queria esquecer a que vivi, mesmo talvez com perda de certas boas qualidades que tenho, mas queria que ela fosse plácida, serena, medíocre e pacífica, com a de todos.
-Penso assim, às vezes, mas, em outras, queria matar em mim todo o desejo, aniquilar aos poucos a minha vida e sumir-me no todo universal. Esta passagem várias vezes no hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa angústia de viver que eu me parece ser sem remédio a minha dor.
- Aqui no hospício, com as suas divisões de classes, de vestuário, etc. Eu só vejo um cemitério: uns estão de carneiro e outros de cova rasa. Mas, assim e assados, a loucura zomba de todas as vaidades e mergulha todos no insondável mar de seus caprichos incompreensíveis.
-Tenho orgulho de me ter esforçado muito para realizar o meu ideal; mas me aborrece não ter sabido concomitantemente arranjar dinheiro ou posições rendosas que me fizessem respeitar. Sonhei Spinoza, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei Dostoievski, mas me faltou a sua névoa.
-Aborrece-me este hospício eu sou bem tratado, mas me falta ar, luz, liberdade. Não tenho meus livros à mão; entretanto, minha casa, o delírio de minha mãe... Oh! Meu Deus! Tanto faz lá ou aqui... Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que é minha casa. Meu filho ainda não delira; mas a toda a hora espero que tenha o primeiro ataque...
-Minha mulher faz-me falta, e nessas horas eu tenho remorsos como se tivesse feito morrer. Logo, porém, como vem de mim mesmo ou de fora de mim uma voz que me diz: É mentira.
- Contudo, eu queria viver isolado, fora dessa paixão pela literatura, pelo estudo. Creio que ela me faz mal e lastimo não ter outra forma de talento em que minha inteligência pudesse trabalhar, absorver toda a minha atividade, sem comunhão com os meus semelhantes.
-O que mais desesperava era a angústia de dinheiro. Não tinha contado com ele, como não contara com muitos elementos que eu desprezava, eles se vingavam...
- Entretanto, nestes últimos dez anos, rara vez eu vinha ver o mar. Vivia numa cidade marítima, sem ir vê-lo nem contemplá-lo. Atolava-me na bebida, no desgosto e na apreensão... Pensava bem em morrer, mas me faltavam forças para buscar a morte.
-Na primeira vez que aqui estive, consegui não me intrometer muito na vida do hospício: agora não, sou a isso obrigado, pois todos me procuram e contam-me mexericos e novidades. Esse convívio obrigado, com indivíduos dos quais não gostamos, é para mim, hoje, insuportável e ainda mais esse furto e as minhas apavorantes dívidas fazem-me desejar imensamente sair daqui. O médico me ofereceu alta, mas não aceitei já porque só quero sair depois do carnaval. Demais, eu penso que o tal delírio me possa voltar, com o uso da bebida. Ah” Meus Deus! Que alternativa! E eu não sei morrer.”

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