sexta-feira, 29 de outubro de 2010

sequência #4

Eram paredes. E só paredes. No máximo uma calçinha pendurada na maçaneta. Estática, já que não existiam nem portas e nem janelas para trazer o vento.
E claro, a maçaneta. E só a maçaneta. Por não existir vento, eu não existia. Não é porque eu não pensava. É claro que eu pensava, mas ainda assim eu não existia.
Era silêncio no meu lugar. E só silêncio.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

sequência #3

- Deságua em mim. Deságua em mim, porque já não sei mais explicar as águas daqui. Porque as águas daqui se revoltam. Porque aqui é sempre maré alta, para cobrir, para me encobrir e para que seja menos um motivo de recomeço. Porque as águas daqui não dão espaço. As águas daqui preenchem até os poros. Eu quero espaço nas águas daqui. Eu quero espaço e dança nas águas daqui. Me diz que você deságua. Me diz, que eu deixo de chorar para dentro e abro chuva lá fora. Me diz para que eu transborde em uma esquina em que você esteja, por um acaso (mas só por um acaso), porque assim quem sabe haverá dança, e assim quem sabe eu explico.

sequência #2

braço direito rente ao peito. braço entra debaixo da axila esquerda. entra.
corpo rola para esquerda. corpo em cima do braço esquerdo. braços abraçam o corpo. braços que abraçam o corpo. impulso. braço esquerdo. debaixo da axila direita. corpo pende pra direita. rola pra direita. o que me falta? braços se abrem. escancarados no chão. braço direito. axila esquerda. rola. braços. Abraço.

domingo, 24 de outubro de 2010

sequência #1

para lembrar da fricção sensível.

do músculo eretor do pêlo.

do que me inunda.

da Superfície.

que respira,

que sua,

que minha.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Carta aos Diretores de Asilos de Loucos

Senhores:

As leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo seus próprios padrões de entendimento.

Não nos façam rir. A credualidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem esta julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram?

Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados em uma tarefa para a qual só existe muito poucos predestinados. Porém não nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens -- capazes ou não -- de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredicto de encarceramento perpétuo.

E que encerramento! Sabe-se -- nunca se saberá o suficiente -- que os asilos, longe de ser "asilos", são cárceres horríveis onde os reclusos fornecem mão-de-obra gratuita e cômoda, e onde a brutalidade è norma. E vocês toleram tudo isso. O hospício de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça, é comparável aos quartéis, aos cárceres, às penitenciarias. Não nos referimos aqui as internações arbitrárias, para lhes evitar o incomodo de um fácil desmentido. Afirmamos que grande parte de seus internados -- completamente loucos segundo a definição oficial -- estão também reclusos arbitrariamente. E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legitimo e lógico como qualquer outra serie de idéias e atos humanos. A repressão das reações anti-sociais, em principio, é tão quimérica como inaceitável. Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vitimas individuais por excelência da ditadura social. E em nome dessa individualidade, que é patrimônio do homem, reclamamos a liberdade desses forcados das galés da sensibilidade, já que não se está dentro das faculdades da lei condenar à prisão a todos que pensam e trabalham. Sem insistir no caráter verdadeiramente genial das manifestações de certos loucos, na medida de nossa capacidade para avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta de sua concepção da realidade e de todos os atos que dela derivam.

Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais -- reconheçam -- só tem a superioridade da forca.

Antonin Artaud